Ontem foi dia de expedição a Milovice, esse navio fantasma que sulca as águas do território checo. Estava-se no início do século XX quando o poder austro-húngaro, que então mandava nestas partes da Europa, decidiu converter a área da aldeia de Milovice em zona militar. Ali se construiu um aeródromo que viu evoluir os primeiros aviões de combate, essas incipientes máquinas voadoras de estabilidade duvidosa, e unidades do exército foram instaladas nas imediações. Terminada a Primeira Guerra Mundial e fundada a primeira república da Checoslováquia, o Governo estabelecido achou por bem manter a natureza militar do sector. Em 1938, a História repete-se: os alemães tomam a Checoslováquia sem disparar um tiro e adoptam Milovice como complexo militar. Ali se treinaram, vá-se lá saber porquê, os homens que com Rommel haveriam de partir em conquista do Norte de África; máquinas de guerra inovadores são testadas, e é dada instrução ao pessoal dos tanques. No aérodromo instalam-se unidades de combate, incluindo esquadrilhas equipadas com os primeiros caças a jacto, o ME-262. Findo o segundo conflicto mundial, as coisas voltam à mesma, com as Forças Armadas Checoslovacas a assumirem o controle das instalações.

Mas foi com a chegada de 1968 e com a invasão dos países do Pacto de Varsóvia (honrosa excepção feita à Roménia, que não participou na infame movimentação) que Milovice entrou na sua fase mais pródiga: ali estabeleceram os soviéticos o quartel-general das suas forças na Europa Central, instalando por lá várias divisões de combate com especial destaque para as unidades de tanques. Na base aérea ficaram estacionadas esquadrilhas de caça, que em 1991 operavam Mig-29. As dimensões do complexo militar de Milovice dilataram-se ao ponto de hospedarem cerca de 120.000 pessoas, entre militares e seus familiares.

Com o colapso da União Soviética, os russos partiram. Deixaram Milovice, que se despediu assim de quase um século de simbiose com a máquina militar de quatro países diferentes. Para trás ficou uma aldeia, dividida entre a tristeza de uma amputação súbita, quando de um dia para o outro viu as gentes que por ali paravam reduzidas de 120.000 pessoas para apenas 6.000, e a alegria de uma libertação do invasor oficioso. Desde então Milovice cresceu um pouco, absorvendo áreas que anteriormente estavam acessíveis aos civis apenas com um cobiçado passe emitido pelas autoridades militares soviéticas. Formou-se a Mlada Milovice, que é como quem diz, a Nova Milovice, à custa de velhos edíficios, recuperados para utilização da população checa. Pelo meio encontram-se velhos trastes, encalhados neste desenvolvimento que procura atingir a modernidade. Uma escola abandonada, com as salas de aula e todos os espaços de suporte, que ainda hoje lá está, tal como os russos a deixaram. Um velho armazém que nos anos 80 representava o objecto de todos os desejos, vendendo ao desbarato bens que a população de Praga apenas poderia sonhar em obter.

Mas se uma boa parte do sector utilizado pelo exército tem estado a ser aproveitado pelos checos, a base aérea jaz ali ao lado, quase parada no tempo, não fosse o fruto do vandalismo que foi deixando sinais. Entrar na área é fácil, e dai até ao abuso sistemático foi um passo. Nos corredores de acesso à pista principal, carros enlouquecidos lançam-se em correrias, fazem “slalons” entre pneus, sempre a guinchar; aqui e acolá é preciso ter cuidado com os jogadores de paintball que disparam primeiro e fazem as perguntas depois. De tempos a tempos – apesar de cada vez menos – enormes festas “tecno” são ali organizadas, invariavelmente terminando em orgias de alcóol e drogas.

Contudo, para nós, meros curiosos ocidentais, Milovice tem outro significado: representa uma última oportunidade de visitar estes testemunhos de outros tempos, quando a guerra se chamava fria. Existem mais representantes deste mundo ido, mas como uma geração de velhos combatentes, vão morrendo um a um, tornando-se menos numeroso a cada ano que passa. Por enquanto é ainda possível obter um relance desse império soviético que se auto-extinguiu.

Já não é fácil ver-se iconologia referente a Lenine por essa Europa que antes se encontrava a Leste do Muro de Berlim, mas em Milovice ainda é possível. Na fachada de um enorme armazém lê-se em checo: “União Soviética para sempre”. Não se pode dizer que o autor da inscrição fosse um visionário, mas desperta sempre curiosidade observar os testemunhos mudos, enterrados nestes espaços esquecidos, desse mundo ido.

Percorrer aquelas ruas e caminhos é uma experiência única. A maior parte dos edíficios teriam funções que se perderam com o tempo. A funcionalidade de outros mantém-se ainda hoje óbvia. A torre de controlo abandonada, vigilante, sobre a pista, é um dos muitos pontos a visitar. Os muitos hangares, semi-enterrados para protecção das aeronaves que abrigavam, estão fechados, mas a sua silhueta impressiona. Imagina-se com facilidade as movimentações daqueles potentes aviões de guerra, num vai-vem, exercício após exercício, em perpétua preparação para a guerra que nunca chegou.  Mais à frente, junto à área residencial, um ginásio que já há-de ter visto muitos momentos de glória tem o seu piso de tacos quase destruido, apesar de se verem ainda as marcações para a práctica do basquetebol. O próximo edíficio era o centro cultural, com uma sala de cinema na qual existem apenas os socalcos onde outrora se encontravam as filas de cadeiras. Do outro lado da rua iniciam-se os blocos residenciais, espalhados por várias ruas. São os fantasmas de betão mais impressionantes desta selva cinzenta, talvez porque a presença humana ali se torna mais gritante. Os pequenos apartamentos que davam abrigo às familias dos militares despertam memórias nos meus amigos russos: “É tal e qual como quando eu era pequeno!” ou “Impressionante como o modelo arquitectónico em voga nesses anos 80 era omnipresente”.

E assim se fez mais uma visita a Milovice. Ontem, com um grupo de amigos, mas habitualmente efectuadas em modo comercial (sim, tour privada com guia português). O tempo foi bastardo pela manhã, com muita neve e um vento gélido que soprava sobretudo na pista de aterragem. O interior dos edíficios encontrava-se dominada por uma inclemente rede de correntes de ar que anulava a sensação de abrigo que se poderia sentir entre quatro paredes. Mas para a tarde a coisa amainou, e ficou mesmo agradável. A terminar o dia, já com o cansaço natural trazido pelas aventuras vividas, o grupo recolheu-se a um pub local na aldeia de Milovice, e foi com entusiasmo que partilhámos à mesa umas doses de queijo frito e as canecas de excelente cerveja checa.

Ricardo Ribeiro viveu durante três anos em Praga, apenas pelo amor à cidade e um dia decidiu criar um website dedicado à sua paixão. Actualmente mantém os fortes laços emocionais e sociais com Praga e passa alguns meses por ano por lá.

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