Cheguei a Praga numa manhã de Inverno. Para trás, mais um periodo natalício passado em Portugal, associado ao meu próprio aniversário e à festa de passagem de ano. Dia 11 de Janeiro saí do aeroporto de Faro. Parti com 17 graus, e umas horas depois estava a aterrar em Ruzyne, já com -5. Pelo meio, uma noite “bem passada” em Gatwick, entre as lajes frias e duras da sala de check-in e o conforto já luxuoso de uma fila de bancos ligeiramente alcochoados, na zona de lojas reservada aos passageiros.

Fui encontrar a minha segunda pátria vestida de branco, linda, como uma noiva. Caiu aqui o mesmo nevão, ampliado umas quantas vezes, que fez com que o caos se instalasse no tráfego aéreo inglês e que chegou a ameaçar a minha rica viagem. Mas para os checos, estas neves são coisas de brincadeira, resolvidas na hora com uma mão atrás das costas. Enquanto Heathrow, Gatwick, Luton e outros aeroportos geridos pelo “povo superior” se imobilizavam, Praga (e já agora, Moscovo) continuava pronta a acolher os aviões que por cá aparecessem.

Rezam as memórias dos mais velhos que o chamado “aquecimento global” tem feito mossa no Inverno checo. Dizem que as coisas já não são como eram. Que os Natais seguramente nevados passaram à História, que estas meia-dúzia de dias com queda de flocos são uma anedota. Dantes sim, era sair de casa e ficar literalmente enterrado  no manto branco. Pois seja como for, concordo que Praga não é actualmente uma cidade de neve. Ela cai, umas quantas vezes por ano, fica por ai uns dias, depois acaba por se esvair na sua própria água e o Inverno volta a ser apenas um sinónimo tristonho de dias cinzentos, árvores nuas, pessoas que cruzam as ruas com os agasalhos completos. O ano passado houve um dia de neve a sério. E como ela caia. Cobriu tudo e até parecia um filme. Mas isso foi dia que já lá vai. Desde então, nada de especial.

Até que cheguei e vi os restos, ainda frescos, do nevão. Já me disseram que foi o maior desde 1993, o que é coisa considerável. Foi há uma semana e os vestígios mantêm-se fortes. Mas quando fiz o percurso entre o aeroporto e casa, vinha de boca aberta. Ora isso foi há três dias. Então o cenário era outro: os carros que não tinha saído a tempo, ficaram enterrados, e conferiam um aspecto bizarro às ruas, como que montículos cobertos, espaçados, por vezes com vestígios discretos da verdadeira natureza daquela geologia: um limpa pára-brisas espetado, como que uma antena irrompendo das profundezas da terra ou um pedaço minúsculo da chapa, a dizer que afinal há ali alguma côr. Em circulação, outros automóveis transportavam emcima de si blocos impressionantes de neve, assemelhando-se a bagageiras de tejadilho, nalguns casos como quase meio metro de altura. Os eléctricos passavam a assobiar, provocando uma projecção de neve como a que se vê saindo dos esquis em alta velocidade. Ruas que normalmente são respeitáveis pedaços de asfalto dos bairros cosmopolitas tornaram-se subitamente num mar de lama gelada, parecendo caminhos de terra, com as caracteristicas marcas de rodado dos lados de um talude central. Equipas da polícia trabalham na remoção da infinita quantidade de gelo e neve, misturadas por todo o lado. Nos jardins, os bancos parecem ter ganho vida nova com o design revolucionário que lhes adicionou um segundo nível, branco, que se alinha rigorosamente sobre a superfície original, alta de várias dezenas de centímetros. Por onde as pessoas passam, o piso está relativamente limpo. Criaram-se trilhos obrigatórios, para além dos quais cada um está por sua conta. De repente, o movimento dos humanos está limitado a carris imaginários. Já não se pode atravessar uma rua onde der na gana; tem que se encontrar o trilho que poderá levar até ao outro lado, e segui-lo respeitosamente. Acabaram-se as corridas para não perder o autocarro ou o eléctrico: na maior parte das vezes não é de todo possível, e na melhor das hipóteses fazê-lo represente um risco quase certo de patinar no gelo e acabar com o rabo esparramado no chão duro. Caminhar junto aos prédios, não é decididamente uma boa ideia; todos os anos um número significativo de pessoas dá entrada nos hospitais de Praga, cabeças e outros ossos partidos pelos blocos de gelo que se desprendem da sustentação precária onde se encontravam, algures lá em cima, junto a um telhado ou sob uma janela. E é essa a razão das diversas fitas de polícia que se vão vendo pelas ruas, causando sempre a curiosidade dos transeuntes, que a custo vencem a força dos agasalhos para olhar para cima, tentando identificar o inimigo mortal que se esconde nas alturas.

E tudo isto irrita os checos. Que ficam com um humor ainda pior do que o costume, chegando a fasquias de azedume consideradas humanamente inalcancáveis. E é assim… se não neva é porque os invernos já não são o que eram, e não se calam que Natal sem neve não é nada, e que faz falta o branco paras as brincadeiras dos gaiatos e graúdos nos parques, enfim, é uma choradeira pegada. Ah mas se neva, então é tudo aquilo que já disse. Só problemas, problemas, problemas.

Ricardo Ribeiro viveu durante três anos em Praga, apenas pelo amor à cidade e um dia decidiu criar um website dedicado à sua paixão. Actualmente mantém os fortes laços emocionais e sociais com Praga e passa alguns meses por ano por lá.

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