Quando a ideia de escrever um breve artigo sobre os quatro principais nomes da literatura checa dos dois últimos anos me ocorreu, sabia que teria dificuldades na selecção. Consultados os meus amigos checos, ficou claro que a escolha seria ainda mais subjectiva do que contava inicialmente. A verdade é que surgiram dois grandes grupos, delineados de forma quase antagónica: os escritores checos que o Mundo conhece, e os escritores que os checos consideram os melhores. Entre os primeiros contam-se Franz Kafka, de certa forma renegado pelos checos pela sua origem cultural e pela língua alemã que sempre usou nas suas obras, assim como Milan Kundera, pouco considerado entre os checos, por uma intrincada teia de razões, das quais destacaria a sua “fuga” para França após 1968, e a adopção da língua francesa nos seus últimos – e mais divulgados – trabalhos.

Por outro lado, os meus contactos locais, sugeriram uma série de nomes, alguns dos quais nunca tinha ouvido falar (também é verdade que a literatura não é um dos meus fortes): Vrchlický, Jirásek, Němcová, Erben, Hašek, Poláček, Ota Pavel, Seifert (vencedor de um Nobel de Literatura), Havlíček, Hynek Mácha.

No fim, optei por um consenso, deixando de fora Kundera, incluindo nomes que não foram de todo rejeitados pelos amantes da literatura checos, e Kafka, pelo seu simbolismo. Quiça num futuro não voltarei a este tema, com uma segunda leva de autores a serem abordados, especialmente Kundera, cujo trabalho muito aprecio….

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Jan Nepomuk Neruda
(1834-1891)
Neruda, para a maioria dos cidadãos do mundo, é um poeta chileno, de primeiro nome Pablo. O que muitos não sabem é que esse escritor nasceu na realidade Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, e criou o pseudónimo artístico inspirado no checo Jan Neruda. Este, nasceu em Praga, corria o ano de 1834. Filho de um merceeiro de Mala Strana, estudou inicialmente em esculas alemãs, mas aos treze anos já o encontramos a frequentar lições de checo. Depois, estudou filologia a pedido de seu pai, e filosofia, por gosto próprio. Trabalhou como professor até 1860, ano em que decidiu dedicar-se por inteiro à arte da escrita. Cedo se tornou num dos membros mais destacado do “realismo” checo e da “escola de Maio” [1]. Enquanto jornalista (escrevia sobretudo para o jornal liberal Národni Listy) e escritor, Jan Nepomuk Neruda cultivou o revivalismo nacionalista checo. Participou nos principais debates políticos e culturais do seu tempo, sempre activo, disputando com Vítězslav Hálek a posição cimeira do panorama literário checo da segunda metade do século XIX.Neruda foi um viajante: percorreu a Europa e chegou a visitar o Próximo Oriente.A sua obra mais famosa, Povídky Malostranské (1877) (Contos do Pequeno Bairro) é uma colectânea de pequenas histórias, que leva o leitor numa viagem ao quotidiano de Mala Strana (Pequeno Bairro, precisamente). Aqui, como de resto em vários dos seus trabalhos, Jan Neruda satiriza a pequena burguesia urbana. A morte e a doença são elementos frequentemente presentes nos seus escritos (ele próprio foi submetido a uma intervenção cirúrgica para remoção de um tumor cerebral quando contava quarenta anos).Falecido em 1891, Jan Neruda foi sepultado no cemitério de Vysehrad, um local especial, reservado aos grandes nomes da História Checa, uma espécie de panteão cultural com forte apelo aos meios nacionalistas de hoje e de outrora. Uma das mais notáveis ruas de Praga viu o seu nome alterada em honra deste escritor: a Nerudova, onde chegou a viver Franz Kafka.[1] A Escola de Maio dominou o panorama da literatura checa nos anos 60 e 70 do século XIX. O seu nome inspira-se no trabalho lírico-épico do poeta Karel Mácha (1810-1836) entitulado Máj, publicado pouco antes da sua morte. A Escola de Maio advogava um corte definitivo com o nacionalismo provinciano então em voga, e a colocação de ênfase em temas gerais da natureza humana.  [1] A Escola de Maio dominou o panorama da literatura checa nos anos 60 e 70 do século XIX. O seu nome inspira-se no trabalho lírico-épico do poeta Karel Mácha (1810-1836) entitulado Máj, publicado pouco antes da sua morte. A Escola de Maio advogava um corte definitivo com o nacionalismo provinciano então em voga, e a colocação de ênfase em temas gerais da natureza humana.

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literatura-kafka-01Franz Kafka
(1883-1924)

Kafka nasceu em Praga, no seio de uma família de classe média dedicada ao comércio. A sua relação com o pai foi sempre delicada; a figura paterna inspirava receio e até alguma repugnância ao jovem Franz, que era impressionado pelos modos autoritários e ruidosos com que o velho Jakob tratava família e empregados. Vindo de uma família origem judaica-alemã, apenas mais tarde Kafka aprendeu o checo, e também o francês. Toda a sua educação académica foi feita em escolas alemãs, e licenciou-se por fim em Direito, corria o ano de 1905. Para ele, o trabalho convencional era um mal menor, uma forma de sustento que lhe permitiria escrever. Algo que desempenhava com relativa competência, mas certamente sem entusiasmo e motivação. Acima de tudo, queria manter-se afastado do universo fabril, algo que em determinada fase falhou, quando o seu pai comprou uma fábrica a meias com o seu cunhado, e lhe entregou o peso da administração. Esses tempos foram de profunda depressão para Kafka, completamente amputado de veia criativa, enquanto se econtrava rodeado do ambiente fabril. De resto, a dificuldade em obter inspiração é uma constante na sua vida. Muda sucessivamente de casa, em busca das condições ideais, mas apenas de tempos a tempos consegue um filão de inspiração. Talvez uma das fases mais produtivas seja encontrada nos tempos que passou com a sua amada irmã Otília [1], em casa desta, na chamada “rua dourada”, junto ao Castelo de Praga.

Enquanto isto, consolida a sua amizade de toda a vida com Max Brod. Em conjunto com Felix Weltsch, formaram o Der enge Prager Kreis (círculo interior de Praga), em redor do qual se reunia o “círculo exterior”, um grupo de escritores judeus de origem alemã que produziram os seus trabalhos na Praga da segunda metade do século XIX.

Kafka nunca foi um judeu practicante, mas a partir de certa altura, já licenciado, começou a interessar-se bastante pelos aspectos culturais do seu povo primordial, e chegou a pensar em estabelecer-se na Palestina.

Como tantas vezes sucede, a actividade literária de Kafka teve um impacto quase nulo enquanto ele foi vivo, e o grosso da sua produção foi publicada apenas postumamente. Nos seus derradeiros desejos, expressos por escrito a Max Brod, Kafka solicita a destruição de todo o seu trabalho não-publicado, algo que o amigo se recusou a executar, assim como a última ligação feminina de Kafka, Dora Diamant, que manteve uma vasta colecção de apontamentos e ensaios, até que estes foram confiscados pela Gestapo.

O autor usou amiúde um estilo apenas possível com a língua alemã, consistindo na aplicação de longas frases, que chegam a ocupar uma página inteira, terminando dramaticamente, com toda a carga e intensidade a serem concentrados nas últimas linhas desse segemento. Estas formas literárias são um pesadelo para o tradutor, porque o núcleo da técnica reside da possibilidade de colocar o verbo no final da frase, algo que se torna impossível na maioria das línguas europeias. Para além disso, Kafka jogava com os múltiplos significados das palavras em alemão, tornando impossível uma tradução efectiva.

No contexto literário, o estilo de Kafka é colocado, segundo os estudiosos, na área do Modernismo, do Realismo Mágico e do Existencialismo. Há ainda quem detecte uma influência do Marxismo e do Anarquismo, tudo isto entre outras teses menores.

[1] Franz Kafka manteve uma excelente relação com as suas três irmãs, mas sobretudo com Otília. Todas elas, e respectivas famílias, morreram no decorrer da II Guerra Mundial, executadas pelos nazis no campo de Auschwitz. Kafka, morrendo precocemente de uma tuberculose, escapou a esse destino. Encontra-se sepultado no cemitério judeu localizado ao lado do principal cemitério da cidade, Olšanské hřbitovy.

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literatura-capek-01Karel Capek
(1890-1938)

Karel Capek nasceu numa pequena aldeia da Boémia, filho de um médico, que exerceu profunda influência sobre o jovem. Depois de algumas mudanças de residência, e antes de concluir os seus estudos, Karel Capek viajou por França e pela Alemanha, e, finalmente, em 1915 licenciou-se em Filosofia pela Universidade Karlovo de Praga. Já antes disso é identificado o seu primeiro período literário, iniciado em 1910 (no total, são identificados cinco períodos distintos – para mais detalhes consultar o link indicado no final deste texto). O seu estilo é caracterizado por uma enorme capacidade descritiva, desenvolvida a partir do uso extensivo da língua checa – o que aliás tem impedido uma maior aceitação do autor no estrangeiro, devido às dificuldades na tradução.

Karel Capek pode ser considerado um dos pioneiros da ficção científica, como um género focado nos possíveis desenvolvimentos da espécie humana e do espaço por ela ocupado. Contudo, a inexistência de aspectos técnicos na sua obra coloca-o, juntamente com Georges Orwell e Aldous Huxley, numa categoria menos conhecida, a ficção especulativa. Os aspectos éticos do desenvolvimento da sociedade humana ocuparam um espaço importante na sua obra: verbalizou questões como a produção em massa, as armas nucleares e a inteligência artificial (foi ele que criou, de todo, o termo “robot”, que se baseia no verbo em checo para “trabalho” [1]).

Nos anos 30 do século XX, Capek, uma alma completamente incapaz de produzir ou aceitar qualquer forma de violência, preocupou-se bastante com o fenómeno nazi, e isso reflectiu-se na sua produção bibliográfica. Por essa altura, a sua relação com o primeiro presidente da Checoslováquia, Tomáš Garrigue Masaryk foi reflectida em três livros biográficos, nos quais Capek dá voz ao seu bom amigo.

Quando se tornou claro que a Alemanha anexaria totalmente a Checoslováquia, o que veio a suceder em 1938, Karel Capek recusou-se a abandonar o país, apesar de estar ciente que seria um dos primeiros alvos a abater pela Gestapo. Ironicamente a pneunomia chegou primeiro, e Karel deixou o mundo dos vivos no dia de Natal desse mesmo ano. Como tantas outras figuras chave da história checa, foi sepultado no cemitério de Vysehrad.

Para consulta da bibliografia do autor, consultar o artigo na Wikipedia.

 [1] Apesar do termo ter surgido pela primeira vez num livro seu, ele deixou uma carta explicando claramente que na realdiade foi o seu irmão Josef que teve a ideia, durante uma sessão de trabalho conjunto, algo comum entre os dois irmãos. Josef, artista multifacetado mas predominantemente pintor, morreu no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen, em 1945.

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literatura-hrabal-01Bohumil Hrabal
(1914-1997)

Hrabal nasceu em Brno, na Morávia, no ano em que o Império Áustro-Húngaro arrastou o povo checo para os horrores da Primeira Guerra Mundial. Criado numa fábrica de cerveja, onde o seu padrasto era gerente, desenvolveu um apetite voraz por cerveja, que marcou a sua “imagem de marca” ao longo de toda a vida. Licenciou-se em Direito pela Universidade Karlovo de Praga, cidade onde passou a viver a partir de finais dos anos 40 do século passado (numa casa que já não existe, nó nr 24 da Na Hrázi, em Libeň). Na década de 50, trabalhou na metalurgia de Kladno, lado a lado com o artista Vladimír Boudník. Em 1965 foi publicado um dos seus trabalhos mais divulgados, Ostre sledované vlaky (Comboios Observados de Perto), que inspirou o filme com o mesmo nome, dirigido por Jirí Menzel em 1966, vencedor do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro. Mais tarde, em 1971, saiu Obsluhoval jsem anglického krále (Eu Servi o Rei de Inglaterra), talvez o segundo grande marco da bibliografia de Hrabal, e foi de novo Jiri Menzel, mas apenas em 2006, que adaptou para cinema a obra do seu amigo entretanto falecido.

O seu estilo é marcado por uma capacidade expressiva acentuada, quase visual. As intrincadas teias políticas e as ambiguidades morais são uma permanente na sua obra. Hrabal usa amiúde da sobreposição da beleza e da crueldade, presentes na vida quotidiana. Outro tema recorrente é a luta quase esquizofrémica entre a moralidade individual e a sociedade dominante. A utilização de tiradas longas é característica da sua forma de escrita, e a obra Taneční hodiny pro starší a pokročilé (Aulas de Dança para Idosos), de 1964, é toda ela uma enorme e ininterrupta frase.

Nos seus anos de Praga frequentava diariamente o pub U zlatého tygra, na rua Husova. Muita da sua produção artística fez-se à mesa deste pub, acompanhada de doses industriais de cerveja. Hrabal era definitivamente um paladino da cultura checa de cerveja.

Antes da Revolução de Veludo de 1989, muitos dos trabalhos de Hrabal encontravam-se banidos na Checoslováquia. Mesmo assim, cerca de três milhões de livros deste autor foram impressos naquele país, e traduzidos em vinte e sete línguas diferentes.

Faleceu em 1997, com 82 anos, vitima da queda de uma janela do quinto andar do hospital onde se encontrava internado, enquanto alimentava os pombos. Provavelmente nunca se saberá se a queda foi casual ou se se tratou de um suícidio. Hrabal escreveu extensamente em Medos Totais sobre a sua degeneração natural, e ao longo da sua extensa obra, o suícidio de personagens das janelas do quinto andar são recorrentes – provavelmente porque ele próprio viveu num quinto andar.

Para mais informação sobre Bohumil Hrabal e o seu trabalho ver Bohumil Hrabal – The Close Watcher of Trains, por Mats Larsson.

Ricardo Ribeiro viveu durante três anos em Praga, apenas pelo amor à cidade e um dia decidiu criar um website dedicado à sua paixão. Actualmente mantém os fortes laços emocionais e sociais com Praga e passa alguns meses por ano por lá.

4 Comentários

  1. Olá Ricardo!
    Como foi bacana ler esse post!Tenho uma amiga que é apaixonada pelos escritores thecos e eu gostaria de trazer um livro de Jan Neruda pra ela quando for em maio a Praga em maio. Você saberia me informar se as livrarias de lá costumam vender livros com tradução em espanhol?
    Grata

    • Oi Carmen, antes de mais gostaria de pedir a você para usar o link do meu website para reservar o alojamento no Booking. Adiante… não será fácil encontrar livros em castelhano em Praga, assim como tenho a certeza que não será fácil encontrar Jorge Amado traduzido para checo em São Paulo ou Rio de Janeiro, mas se em algum lado houver, será aqui, a livraria que os residentes estrangeiros usam para se abastecer, apesar de ser mais centrada em livros em inglês:
      https://www.shakes.cz/

      Pode também procurar na Internet a delegação de Praga do Instituto Cervantes e escrever-lhes um e-mail. Eles saberão melhor do que mais ninguém.

  2. Caro Ricardo,

    Belo site. Obrigado por esta panorâmica da literatura checa.

    Estive em Praga sometne uma vez, a trabalho, e me apaixonei pelo jeito da cidade. Ainda vou voltar e vê-la como se deve, com velocidade menor para aproveitar os detalhes.

    Osterne Feitosa

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